“O Cantil” – O MEDO DO OPRESSOR (CRÍTICA – FIT)

Como um desenho animado ou um filme, desenrola-se diante de nossos olhos a saga diária de uma dupla que conhecemos bem, na sua simbologia: quem manda e quem obedece. Inspirado em A exceção e a regra de Brecht, o Teatro Máquina dedicou-se a reduzir essa obra a seus elementos mais essenciais que vêm a compor este “O Cantil”, teatro de animação com “bonecos” humanos. Dessa maneira reduplicam a relação do tema na forma de narrá-lo: para o perfeito funcionamento do homem-boneco é necessário que o primeiro se abandone totalmente às ordens do segundo, abdicando do livre arbítrio, de sua história de corpo automovente, que possui uma biografia e um aprendizado. É muito difícil essa tarefa, representa um esforço tremendo, pressupõe uma vigilância constante para que não se deixe escapar, por um minuto sequer, as vontades daquele corpo.
Na fábula descrita, ocorre o mesmo. O oprimido não ousa apresentar-se como alguém que também tem sede. Seu amo o comanda, diz-lhe o que fazer. O opressor é mau, impaciente, oportunista (serve-se da intuição e sagacidade do oprimido para orientar-se em meio ao “deserto”). Nega-lhe as condições de sobrevivência mas sua condição depende do seu servo. E, nos sonhos, teme a sua revolta.

É uma fuga? É uma viagem, uma travessia? Nada disso importa exatamente, a situação é descarnada e consiste tão somente em descrever um equívoco do opressor, baseado em um sonho. Como fruto de sua paranóia, imagina que aquele que o serve pode ser potencial ameaça (embora não cesse de mantê-lo na condição rebaixada).

Parece esquemático e é. A questão é que, de certo modo, o espetátulo O cantil é uma meta-peça. Tomando como premissa um prévio conhecimento do público sobre o sentido do teatro didático de Brecht, a ação apenas entrega o julgamento ao espectador, limitando-se a expor a situação. Vai ser o modo como ela é exposta que determinará uma diferença no que diz respeito ao grupo e até mesmo à sua proveniência.

Primeiro, como disse, a escolha de corpos humanos manipulados. O contraste entre o negro das vestes dos manipuladores e o branco dos bonecos. As oposições entre o dia e a noite. A manifestação dos fantasmas no sonho como duplos quase idênticos aos personagens, mas com sinais invertidos: nos sonhos, o opressor passa à condição inferior, e vice-versa.

É bem conhecida a tese defendida por um personagem no conto-ensaio de Heinrich Von Kleist (1777-1811), “Sobre o teatro de marionetes” (1810): a da superioridade das marionetes sobre os humanos e do quanto estes tem a aprender com aquelas. A tradição desta estranha idéia desenvolveu-se ao longo do século 20, espraiando-se pelo cinema e pela arte da performance. É uma vertente que desprivilegia o psicologismo predominante na atuação cênica tradicional, ao deslocar a ênfase da ação cênica para o corpo e sua relação com o mundo. Torna-se, pois, interessante que o Teatro Máquina perceba a necessidade de organizar elementos que possam complexificar a oposição didática que vem de Brecht (sem prejuízo da inteligência de seu projeto).

A presença de uma situação na qual a posse da água é parte do mecanismo opressivo, responde por um aspecto político suplementar: a questão da seca “nordestina”, problema de poder, de interesses que dela continuam a se nutrir. Num grupo cearense, é um aceno interessante a um aspecto local que evita o “regionalismo” e, do modo como é usado, esteticamente equilibrado com os demais elementos, consegue falar para além de sua proveniência. É inevitável que se pense em qualquer situação de viagem penosa, incluindo a dos retirantes.

O “não-atuar” ou um “atuar-menos” dos bonecos é, porém, muito exigente: em alguns momentos gestos escapam, as soluções para retirar os corpos das tendas, levantá-los etc por vezes contam com a colaboração dos manipulados. No pequeno caderno que o grupo montou para apresentar o espetáculo, fala-se de uma influência oriental que, entretanto, não me pareceu tão evidente. Ainda um excedente “dramático” por assim dizer, me parece escapar nos movimentos destes corpos que se querem tão inertes. Esta é uma arte que tem seu tempo para desenvolver-se mais ainda, embora o patamar já seja elevado.

As soluções visuais do céu de estrelas e dos sonhos são muito sagazes. Cheguei a imaginar as tais estrelas em outra peça que vi nesse Festival, nesse mesmo Teatro da Unip. A simplicidade da solução rivaliza com a dos cartoons dos sonhos, baseados em técnicas clássicas de animação cinematográfica.

As duplas – que poderiam também lembrar, com um pouco de esforço, Hamm e Clov, Pozzo e Lucky, um clima beckettiano – se impõem nesse trabalho, a meio caminho da dança e da performance (os movimentos muitas vezes acabam apontando para quadros vivos). O que me incomoda, para não dizer que me assusta, é a permanência da lógica binária. Num experimento contemporâneo, a ambição maior talvez fosse suplantar as dualidades. Mas quem sabe o próprio processo ensine mais este difícil caminho.

Lucio Agra
Leitor Crítico
http://www.festivalriopreto.com.br

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